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Ebola, omissão e negligência

- Claudia Bittencourt



Confira o artigo sobre o Ebola escrito pelo assessor da Fiocruz Brasília, Agenor Álvares da Silva, publicado na edição de hoje (9), do jornal Correio Braziliense.

José Agenor Álvares da Silva  (Assessor da Fiocruz, foi ministro da Saúde e diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa)

Com tonalidades e contornos diferentes, a história se repete não como farsa, mas como tragédia humanitária. Uma incrível semelhança se constata entre os fatos vividos, atualmente, pela epidemia do vírus ebola, no oeste do continente africano, e a epidemia de meningite que assolou o Brasil na década de 1970.

No Brasil, sob a égide da ditadura militar, as informações sobre a epidemia de meningite eram manipuladas e censuradas, enquanto a incidência da doença estava circunscrita às populações periféricas e não ameaçava as chamadas classes privilegiadas. Somente após a doença romper as barreiras sociais e não fazer distinção entre pobres e ricos, o governo militar reconheceu a gravidade da situação e ordenou uma intervenção para debelar o problema. Foi, então, desencadeada uma das maiores campanhas de vacinação em massa que se tem notícia no Brasil.

A epidemia do ebola, no oeste da África, nos mostra, com uma crueldade alarmante, exatamente o que aconteceu no Brasil há 40 anos. Descaso, omissão e negligência. Crime hediondo. Somado a isso, a arrogância daqueles que se julgam donos do mundo. De acordo com o milionário Donald Trump, os dois cidadãos americanos contaminados pelo ebola e levados para tratamento no CDC, em Atlanta, "deveriam sofrer as consequências" por estarem onde não deveriam estar. Faz-nos lembrar daquele personagem de Chico Anísio, o Justo Veríssimo. Pobre? Não deveria nem ter nascido.

Foto: BBC

Como os fatos ocorrem no quintal dos outros, o sofrimento das famílias que convivem com suas perdas é relegado à insignificância dos mortos e do continente. É mais "saudável" se preocupar com o conflito do leste da Ucrânia, com a deblaque política do Iraque e da Síria ou com a invasão da faixa de Gaza. Afinal, nesses locais, os senhores da guerra e a indústria bélica mundial, com apoio de governos nacionais, tem um ambiente altamente lucrativo para seus negócios.

A poderosa indústria farmacêutica, de seu lado, também vem demonstrando insensibilidade e omissão. Há mais interesse na pesquisa e na produção de medicamentos para as doenças do mundo moderno do que no apoio à pesquisa para produção de vacinas que possam proteger a saúde de milhares de pessoas, secularmente negligenciadas em seus direitos de cidadão.

Durante anos, vários segmentos da comunidade internacional alertam para as condições de pobreza e miséria a que está submetida a maioria da população da África, notadamente, na região subsaariana. No campo da saúde, qualquer novo alerta que se fizer sobre a possibilidade de agravos "inusitados" à saúde dos povos daquele continente, com possibilidade de repercussão sanitária para outras partes do mundo, é considerado mantra e cantilena de sanitaristas e alarmistas desocupados e que deveriam procurar o que fazer.

Embora a BBC de Londres tenha noticiado a iniciativa de uma empresa farmacêutica inglesa de tentar produzir uma vacina até meados de 2015, causa espanto que, até o momento, não se veja nenhuma providência concreta para debelar essa epidemia por parte de governos das grandes potências detentoras da riqueza mundial.

Fora isso, o que se vê são apenas previsões catastróficas sobre o alastramento da epidemia para outros países do continente, gerando pânico e desconfiança entre a população. Nenhuma sinalização de apoio financeiro aos países acometidos por esse vírus que garanta esperança às pessoas e condições mínimas de trabalho àqueles que estão em contato direto com os doentes é percebido.

O caso da epidemia de ebola é uma vergonha deste início de século. O vírus foi descrito desde 1976, na África, como perigo real e eminente, dada a letalidade da doença. O problema é agravado ainda mais pelas precárias condições sanitárias dos países acometidos pelo ebola, pela péssima qualidade de vida da população e pelas crenças culturais da região, que propiciam condições adequadas à transmissão. Essa moléstia, tal qual a meningite no Brasil na década de 1970, só será combatida com vigor se, realmente, vier a ser considerada ameaça concreta à saúde dos habitantes de classes mais altas das nações de outras regiões do planeta.

 

Fonte: Correio Braziliense